domingo, 5 de julho de 2009

CARTAS DO QUINTO NAIPE (3): O Bilhete de Identidade

(Já é nostalgia para alguns)

Morou nas nossas carteiras décadas a fio. Em muitas carteiras lusitanas, ainda o podemos encontrar. Mas não na minha. O meu já morreu, de morte morrida. Foi-se. Extinguiu-se, tornou-se obsoleto e levou alguns amigos consigo.

Para ter um, precisávamos de tirar umas quantas fotografias em papel, que, invariavelmente, deixavam os cavalheiros com ar de presidiários. Sim, eram precisas fotos em papel. E era necessário sujar o dedo com tinta.

Era grande demais para quem tem uma carteira pequena: 10,5 por 7,5 centímetros. O aspecto era mais do que antiquado, especialmente quando estava na companhia e outros colegas seus em formato de cartão de crédito. E era um desbocado, porque dizia mais do que devia - até o nosso estado civil era chamado para o assunto, como se o Mundo parasse para saber se somos casados, solteiros, divorciados ou viúvos.

Mas, com todos os muitos defeitos que tinha, foi uma presença constante nas nossas vidas. Era ele quem dizia ao Mundo: “Olhe, está a ver, aquele senhor ali é um cidadão português”. Depois dos 10 anos (ou seja, antes de entrarmos para o 5º ano/1º ano do Ciclo Preparatório) era quase tão obrigatório como a chegada da morte num qualquer ponto das nossas vidas. Por tudo e por nada, tínhamos de chamá-lo à baila.

O Bilhete de Identidade morreu. O meu, pelo menos, já está na cova, com sete palmos de terra e uma jarra com flores em cima. Nas sepulturas do lado, encontro os meus cartões da Segurança Social, de Contribuinte e de Eleitor (este último, com o mesmo formato horroroso do defunto que dá nome a estas linhas). Só lamento que a Carta de Condução não tenha ido junto, mas nem tudo é perfeito e a minha antiga carta, a cor-de-rosa, até era bem pior do que esta que tenho agora.

Tenho a carteira mais leve. Não tenho Bilhete de Identidade. Nem saudades dele. Tive muitos e nenhum me agradou. Eram grandes, feios e desajeitados.

Há dois anos, um tal José Sócrates anunciou que o BI ia morrer. Sem pesar, nem nostalgia, mostrou-nos o pequeno Cartão do Cidadão, todo catita e janota, que já não necessitava de fotografias em papel da Idade da Pedra ou dos jurássicos dedos molhados na tinta negra. Dois anos depois do anúncio, matei o meu BI. Não fui eu que o matei, foi o senhor da Loja do Cidadão, que furou o defunto e entregou-mo de volta para recordação.

O meu foi-se. Ainda bem. E o vosso?

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