quarta-feira, 8 de julho de 2009

ROYAL STRAIGHT FLUSH (4): Ouvir apenas faixas de trabalho, seguir apenas a playlist e criar acefalia musical

Um familiar meu, perdido algures no final da adolescência, espanta-se sobejamente com o facto de eu ainda adquirir CD’s e, imagine-se, possuir álbuns inteiros. Para ele, que passa dias inteiros agarrado ao seu mp3, a música resume-se a um amontoado de músicas isoladas (as que passam nas rádios e na MTV a toda a hora e a todo o momento), que, obviamente, não podem ser compradas - para alguma coisa existe o e-mule (que também serve para encher os computadores de vírus).

Preocupa-me este sentimento das gerações mais novas em relação à música. Em primeiro lugar, a ideia de que o fruto do trabalho dos artistas (e, em muitos casos, o seu ganha-pão) não deve ser comprado, devendo, isso sim, estar disponível de forma totalmente gratuita. Logo aí temos o sinal de uma adolescência marcada por doses cavalares de facilitismo: Tudo é fácil, tudo se arranja, tudo é grátis, nada dá trabalho.

Em segundo lugar, a ideia de que só existem os artistas e bandas que as rádios e os canais de música divulgam. Felizmente, ainda há muita gente que se dá ao trabalho de seleccionar a música que irá ouvir, o que, muitas vezes, significa descobrir coisas verdadeiramente inacreditáveis. Por exemplo, Elend. Alguém conhece? Pois, não passa nas rádios, nem na MTV ou na VH1. Mas existe. E é projecto soberanamente bom (ouçam apenas se estiverem num estado de espírito melancólico). Mas Elend é apenas um exemplo entre milhões e, para muitos, até pode ser um mau exemplo (há quem ame e há quem abomine este projecto franco-austríaco).

Em terceiro lugar, a ideia de que apenas existem músicas e não álbuns. Por vezes, o primeiro single escolhido para apresentar um álbum é aquela faixa certeira, mas, em muitos casos, pode dar-nos uma ideia errada de todo um trabalho. Há singles que são melhores do que todo um álbum, ao passo que outros são apenas a faixa de trabalho escolhida e a menos interessante de todo um registo.

Em quarto lugar, o mais importante: Se deixarmos que sejam as rádios ou a MTV a escolher a música que vamos ouvir, arriscamo-nos a cair numa ditadura mental sem nos apercebermos. Basicamente, as editoras trabalham um determinado produto, «obrigam» as rádios a divulgá-lo e os ouvintes, carneirada acéfala sem vontade, deixam que os seus ouvidos se transformem em penicos onde toda a merda pode ser depositada. Se deixamos que tal suceda, deixamos de ter vontade… e tornamo-nos acéfalos musicais. Depois de deixamos de ter vontade própria em relação ao que ouvimos, podemos perfeitamente de deixar de ter vontade própria em relação a tudo o mais. É só o primeiro passo.

A música é uma das melhores formas de libertação que existem e um dos muitos caminhos para o conhecimento (foi graças a Herr Spiegelman, dos Moonspell, que senti vontade de ler «O Perfume», cujo capítulo 49 é parcialmente citado a meio da música). A música pode ser igualmente um reflexo dos nossos estados de espírito e isso é algo que ninguém pode escolher por nós, porque nós é que sabemos como nos sentimos naquele momento, naquela hora, naquele instante, naquela semana.

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